Dívidas Rurais: Como Devo Proceder?

Sumário

Por Dr. Guilherme de Carvalho, sócio-diretor da G. Carvalho Advogados – Escritório do Brasil Profundo, advogado sênior especializado em contratos bancários agrícolas e em agronegócio, com presença nacional em prol do setor agrícola.


A questão das dívidas rurais no Brasil tem sido amplamente discutida, especialmente em tempos de adversidades econômicas e instabilidades no setor agrícola. Os produtores rurais, que são essenciais para a economia do país, frequentemente enfrentam desafios financeiros decorrentes de condições climáticas, flutuações no mercado internacional, além de problemas relacionados ao endividamento por meio de contratos bancários.

Este texto tem como objetivo proporcionar uma visão aprofundada sobre as dívidas rurais, abordando desde os aspectos jurídicos até as estratégias práticas que podem ser adotadas pelos produtores endividados. A análise envolve o contexto de custeio agrícola, contratos bancários, renegociação de dívidas e a anulação de confissões de dívida. Além disso, trazemos uma abordagem detalhada sobre execuções de dívidas, recuperação judicial e questões tributárias no campo, além de citar jurisprudências, doutrinas e estratégias legais pertinentes.

1. O Cenário Atual do Endividamento Rural

Nos últimos anos, o endividamento rural se tornou uma preocupação crescente. Dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) apontam que a dívida agrícola nacional supera a casa dos bilhões de reais. Parte desse endividamento decorre da necessidade de capital para o plantio e custeio de safra, o que leva os agricultores a contraírem empréstimos bancários, muitas vezes em condições desfavoráveis.

Os contratos de custeio agrícola, comumente oferecidos por bancos e cooperativas de crédito, visam financiar a produção agropecuária. No entanto, o descasamento entre a produção e as condições de pagamento pode causar inadimplência, forçando os produtores a buscarem renegociações ou até mesmo enfrentar execuções judiciais.

1.1 Impactos da Crise Climática e Econômica

Além de fatores internos, o agronegócio brasileiro sofre com as adversidades climáticas. Secas prolongadas, enchentes e outras intempéries impactam diretamente a produção agrícola, reduzindo as safras e impossibilitando o cumprimento das obrigações financeiras. A crise global no setor de commodities também afeta os preços agrícolas, agravando a situação dos produtores que têm margens de lucro reduzidas e dificuldades em arcar com o pagamento de suas dívidas.

1.2 Principais Fontes de Endividamento

Os produtores rurais, especialmente pequenos e médios, geralmente recorrem a três fontes principais de endividamento:

  1. Contratos de Custeio Agrícola: Visam financiar os custos da produção, como compra de sementes, defensivos, fertilizantes e pagamento de mão de obra.
  2. Dívidas Tributárias: Muitos agricultores acumulam passivos fiscais com o fisco estadual e federal, seja por impostos sobre a terra (ITR) ou sobre a produção (ICMS).
  3. Créditos Pessoais e Empresariais: Além dos financiamentos específicos para o agronegócio, muitos produtores recorrem a linhas de crédito pessoal ou empresarial, com taxas de juros mais altas e prazos de pagamento mais curtos.

2. Estratégias Jurídicas para Lidar com as Dívidas Rurais

2.1 Renegociação de Dívidas Agrícolas

Uma das estratégias mais comuns e imediatas para lidar com o endividamento rural é a renegociação das dívidas junto às instituições financeiras. O Decreto-Lei nº 167/1967, que regulamenta as cédulas de crédito rural, oferece mecanismos para os produtores buscarem renegociações com prazos alongados e juros menores.

2.2 Suspensão de Execuções e Acordos Extrajudiciais

Nos casos em que o banco ou credor já iniciou uma execução judicial contra o produtor, é possível pleitear a suspensão do processo, argumentando sobre condições excepcionais, como a perda significativa de safra. Jurisprudências recentes têm sido favoráveis a produtores que, por exemplo, enfrentaram quebras de safra devido a fenômenos climáticos, como a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial nº 1.497.235/PR.

Além disso, o Plano Collor Rural, conforme recente jurisprudência do STJ, tem sido um tema de intensa discussão, já que muitos produtores rurais enfrentam execuções relacionadas a contratos firmados na época do Plano Collor, quando houve a correção monetária abrupta dos valores devidos. Assim, têm sido buscadas revisões e adequações dos valores dos contratos daquela época, para reduzir o passivo dos agricultores.

2.3 Anulação de Confissão de Dívidas

Outro ponto crucial é a análise das confissões de dívida assinadas pelos agricultores. Muitos produtores, ao se verem pressionados pelas instituições bancárias, acabam assinando confissões de dívida com valores exacerbados, muitas vezes incluindo juros abusivos e cláusulas desvantajosas. Contudo, essas confissões podem ser anuladas judicialmente, especialmente quando se comprova que o agricultor assinou o documento em estado de necessidade ou desconhecimento dos seus direitos.

Em termos de doutrina, destaca-se o entendimento de que a confissão de dívida, apesar de ser um título executivo extrajudicial válido, não pode conter termos abusivos. A revisão judicial desses contratos é amparada pelo Código Civil Brasileiro, especialmente no que se refere à teoria da onerosidade excessiva, disposta no artigo 478, que permite a revisão de contratos em razão de fatos supervenientes que alterem as condições iniciais do contrato, como uma queda abrupta da produção ou desvalorização de commodities.

Além disso, a jurisprudência atual reconhece que as confissões de dívida em contratos agrários e bancários, quando atreladas à pressão econômica e à desigualdade na negociação, podem ser anuladas com base no princípio do equilíbrio contratual, conforme o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) no julgamento da Apelação nº 1002347-78.2018.8.26.0053.

2.4 Planejamento Tributário e Negociação com o Fisco

A dívida tributária rural também é um ponto que merece atenção. Muitos produtores acumulam débitos com o fisco estadual e federal, o que pode resultar em bloqueio de bens e dificuldades operacionais. No entanto, existem mecanismos de parcelamento e programas de regularização fiscal, como o Programa de Regularização Tributária Rural (PRR), que permite a renegociação dos débitos com condições mais favoráveis.

A Lei nº 13.606/2018, que institui o PRR, tem sido amplamente utilizada para regularizar passivos fiscais de produtores rurais. No entanto, é fundamental que o agricultor esteja ciente de todos os detalhes do parcelamento, pois, em muitos casos, a adesão a esses programas envolve a confissão irretratável da dívida, o que pode limitar futuras contestações judiciais.

2.5 Recuperação Judicial do Produtor Rural

Nos últimos anos, a recuperação judicial de produtores rurais tem ganhado destaque como uma alternativa viável para aqueles que enfrentam sérias dificuldades financeiras. Embora a recuperação judicial, prevista na Lei nº 11.101/2005, tenha sido inicialmente voltada para empresas, há uma crescente jurisprudência que reconhece o direito dos agricultores de se beneficiarem desse instrumento, desde que comprovem a sua atividade como empresário rural por mais de dois anos.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisões recentes, tem admitido que os produtores rurais possam ingressar com pedidos de recuperação judicial, desde que cumpram os requisitos legais, como demonstrado no julgamento do Recurso Especial nº 1.800.032/MT. Isso possibilita uma reestruturação mais ampla das dívidas, com a inclusão de débitos bancários, fiscais e com fornecedores.

3. Os Contratos de Financiamento Agrícola e Cédulas de Crédito Rural

Os contratos de financiamento rural são regulados, principalmente, pelo Decreto-Lei nº 167/1967, que trata das cédulas de crédito rural (cédulas de crédito bancário, hipotecário, pignoratício e industrial). Esse tipo de contrato foi desenhado para prover suporte financeiro ao setor agrícola, oferecendo condições de pagamento que geralmente acompanham o ciclo de produção agrícola. No entanto, muitas vezes os termos contratuais acabam sendo desequilibrados em desfavor do produtor, especialmente quando o ambiente econômico é adverso.

3.1 Cédulas de Crédito Rural e as Garantias Oferecidas

O principal instrumento de financiamento rural é a cédula de crédito rural, que pode ser de várias modalidades, dependendo das garantias oferecidas:

  • Cédula pignoratícia rural: Baseada em penhor de produtos agrícolas ou de insumos, geralmente vinculados à produção da safra;
  • Cédula hipotecária rural: Garantida por imóveis rurais, que servem como lastro para o crédito;
  • Cédula de crédito bancário rural: Emitida diretamente por bancos e cooperativas de crédito, com base em aval ou outras garantias pessoais.

A legislação brasileira admite que o produtor rural, como pessoa física, contrate cédulas de crédito rural. É comum que tais cédulas prevejam condições rígidas, como juros flutuantes e penalidades severas em caso de inadimplência. É essencial que o produtor tenha plena ciência dos riscos associados às garantias que está oferecendo, pois o descumprimento das obrigações pode acarretar a perda dos bens garantidos — muitas vezes, propriedades de valor inestimável para a continuidade das atividades rurais.

3.2 Cláusulas Abusivas em Contratos Agrícolas

Um ponto que merece atenção especial são as cláusulas abusivas, especialmente em tempos de crise. Diversos contratos de crédito rural incluem taxas de juros flutuantes ou vinculadas ao câmbio, que podem se tornar impagáveis devido à desvalorização cambial ou à inflação. Nesses casos, é possível pleitear judicialmente a revisão contratual com base no Código de Defesa do Consumidor, já que o agricultor, embora seja considerado empresário rural, em muitos casos assume uma posição de vulnerabilidade técnica em face do sistema bancário.

A revisão judicial de contratos com cláusulas abusivas foi consolidada em diversos precedentes, como a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial nº 973.827/RS, onde se discutiu a nulidade de cláusulas que impunham condições excessivamente onerosas ao tomador de crédito rural.

4. O Papel do Estado e os Programas de Crédito Rural

O crédito rural é uma das principais ferramentas da política agrícola brasileira, com o objetivo de financiar atividades agropecuárias e fomentar o desenvolvimento do setor. Esse financiamento pode vir de fontes públicas, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ou de instituições privadas, como bancos e cooperativas de crédito.

4.1 Subvenções e Incentivos Governamentais

Através de programas como o Plano Safra, o governo federal oferece crédito subsidiado aos produtores rurais, com taxas de juros mais baixas do que as praticadas no mercado convencional. No entanto, a complexidade burocrática e os altos custos de produção podem levar ao endividamento. O não cumprimento das obrigações relacionadas ao crédito subsidiado pode gerar execuções severas, com implicações graves para o patrimônio do agricultor.

O Fundo de Defesa da Economia Cafeeira (Funcafé), por exemplo, tem sido um importante instrumento de financiamento para cafeicultores. No entanto, muitos produtores têm relatado dificuldades em cumprir com os prazos e condições exigidos pelo governo, o que leva a uma sucessão de refinanciamentos que acabam aumentando a dívida ao longo do tempo.

4.2 O Impacto das Políticas Públicas no Endividamento Rural

O Estado tem um papel ambíguo na questão das dívidas rurais. Embora forneça crédito para o desenvolvimento agrícola, falhas na execução dessas políticas frequentemente agravam o endividamento dos produtores. Exemplo claro é o constante atraso nos repasses de subvenções agrícolas, o que deixa muitos produtores à mercê de condições climáticas adversas, sem recursos suficientes para gerir suas atividades.

A ineficiência de programas como o Proagro (Programa de Garantia da Atividade Agropecuária) em oferecer a devida compensação para produtores que sofrem perdas de safra é um dos motivos pelos quais o endividamento rural persiste. A jurisprudência brasileira já reconheceu a responsabilidade do governo em alguns casos de ineficácia do Proagro, obrigando o Estado a indenizar agricultores prejudicados (como no REsp nº 1.157.826/RS).

5. Execução de Dívidas Rurais e Defesa Judicial

Quando o produtor rural não consegue honrar os pagamentos, os credores — especialmente instituições financeiras — iniciam processos de execução. A execução de dívida rural pode ser devastadora, pois envolve, muitas vezes, a penhora e venda judicial de propriedades, insumos e produtos agrícolas, comprometendo não apenas o ciclo produtivo, mas a subsistência do agricultor.

5.1 Impenhorabilidade do Bem de Família Rural

Um ponto importante na defesa do produtor rural em execuções é o uso da impenhorabilidade do bem de família, prevista na Lei nº 8.009/1990. Essa legislação protege o imóvel rural que serve de moradia para o agricultor e sua família, impedindo que ele seja penhorado para pagamento de dívidas.

Entretanto, a jurisprudência tem reconhecido que, para que o bem de família seja considerado impenhorável, o imóvel rural deve ser utilizado como moradia e para sustento da família, o que exige comprovação documental e pericial. Uma decisão recente do STJ (REsp nº 1.365.200/SP) reafirmou esse entendimento, assegurando a impenhorabilidade em um caso de execução de cédula de crédito rural.

5.2 Prescrição e Decadência das Execuções Rurais

Outro aspecto importante é o prazo de prescrição e decadência para as ações de execução de dívidas rurais. O prazo prescricional das cédulas de crédito rural é de três anos, conforme o artigo 70 da Lei Uniforme de Genebra e a Súmula 300 do STJ. Esse é um ponto que pode ser usado como argumento de defesa para impedir a continuidade de uma execução que já perdeu seu prazo legal, evitando, assim, prejuízos ao produtor.

5.3 Suspensão da Execução por Força Maior

Muitas vezes, as execuções podem ser suspensas ou mitigadas com base na alegação de força maior, como no caso de uma quebra de safra causada por fatores climáticos. O artigo 393 do Código Civil Brasileiro ampara essa defesa, ao prever que o devedor não responde pelos prejuízos decorrentes de eventos imprevisíveis e inevitáveis.

A jurisprudência tem sido sensível a casos em que os produtores rurais, por exemplo, sofreram perdas significativas de produção devido à estiagem ou excesso de chuvas. Nesses casos, os tribunais têm aceitado suspender temporariamente a execução e, em alguns casos, promover revisões contratuais para ajustar as condições de pagamento às novas realidades econômicas (REsp nº 1.476.820/RS).

6. A Recuperação Judicial do Produtor Rural

A recuperação judicial tem sido um tema cada vez mais relevante para produtores rurais em dificuldades financeiras. A Lei nº 11.101/2005, que regulamenta a recuperação judicial, foi originalmente destinada a empresas, mas vem sendo aplicada, por analogia, aos produtores rurais.

6.1 Requisitos para o Pedido de Recuperação Judicial

Para que o produtor rural possa requerer a recuperação judicial, ele deve estar registrado como empresário rural há, pelo menos, dois anos e demonstrar a viabilidade econômica da sua atividade. O processo de recuperação permite ao agricultor a suspensão temporária das execuções e o parcelamento das suas dívidas, incluindo aquelas com fornecedores e instituições financeiras.

Um precedente importante sobre o tema foi o julgamento do STJ no Recurso Especial nº 1.800.032/MT, que consolidou o entendimento de que os produtores rurais podem se beneficiar da recuperação judicial, desde que comprovem o exercício regular da atividade agrícola por mais de dois anos, ainda que o registro como empresário rural seja posterior ao início das atividades.

6.2 Plano de Recuperação Judicial

O plano de recuperação judicial deve incluir propostas para pagamento dos credores, bem como medidas de reestruturação da atividade rural. É fundamental que o plano seja bem elaborado, com o suporte de profissionais especializados em agronegócio, para que seja aprovado pelos credores em assembleia.

A jurisprudência vem sendo progressivamente mais flexível quanto à aceitação de planos de recuperação no setor rural, considerando as particularidades da atividade agrícola e o impacto de fatores externos, como clima e mercado. Recentemente, o TJ-MG, no Agravo de Instrumento nº 1.0024.16.230713-1/001, deferiu liminarmente a recuperação judicial de um produtor rural, entendendo que o mesmo poderia reestruturar suas dívidas sem prejuízo da continuidade da produção.

7. Conclusão: O Caminho para a Solução das Dívidas Rurais

A complexidade envolvida no endividamento rural demanda uma abordagem integrada, envolvendo tanto o conhecimento técnico do setor agrícola quanto a expertise jurídica para lidar com os contratos bancários, execuções judiciais e programas de crédito rural. Os produtores rurais devem buscar orientações especializadas para explorar todas as possibilidades de renegociação, revisão de contratos e, se necessário, recuperação judicial.

Os passos iniciais para um agricultor endividado incluem:

  • Análise minuciosa dos contratos bancários e tributários para identificar cláusulas abusivas ou possibilidades de renegociação;
  • Busca de soluções extrajudiciais, como acordos com credores e adesão a programas de regularização fiscal;
  • Defesa judicial bem estruturada, caso a dívida seja levada a execução, utilizando-se de todos os mecanismos legais para preservar o patrimônio do produtor;
  • Planejamento financeiro adequado, buscando evitar a contratação de novos empréstimos com condições desfavoráveis.

Se você é um produtor rural enfrentando dificuldades financeiras ou deseja saber mais sobre como lidar com as dívidas rurais, entre em contato com a nossa equipe da G. Carvalho Advogados. Com nossa vasta experiência no setor agrícola, podemos ajudá-lo a encontrar as melhores soluções para preservar sua atividade e seu patrimônio.


Por Dr. Guilherme de Carvalho, sócio-diretor da G. Carvalho Advogados – Escritório do Brasil Profundo, advogado sênior especializado em contratos bancários agrícolas e em agronegócio, com presença nacional em prol do setor agrícola.

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