Alienação Fiduciária Rural: A Garantia Que Move o Agronegócio e Gera Controvérsia

Sumário

1. O Conceito Fundamental da Alienação Fiduciária no Campo

A Alienação Fiduciária em Garantia é um instrumento jurídico que se tornou vital para o mercado de crédito, e sua aplicação no setor rural tem crescido exponencialmente. Em essência, trata-se de um contrato acessório a um financiamento, no qual o produtor rural (o fiduciante) transfere a propriedade de um bem (imóvel ou móvel, como máquinas e safras) para o credor (o fiduciário), mas mantém a posse direta do bem.

Essa transferência de propriedade é resolúvel, ou seja, temporária. O credor detém a propriedade apenas como garantia, e assim que a dívida é integralmente quitada, a propriedade é automaticamente consolidada de volta ao nome do produtor rural, sem a necessidade de novo registro.

A principal força deste mecanismo reside na segurança que ele oferece ao credor, o que, teoricamente, se traduz em maior disponibilidade e menor custo do crédito para o produtor rural.

2. A Evolução Legal e a Lei do Agro (Lei nº 13.986/2020)

Inicialmente consolidada pela Lei nº 9.514/97 (focada em bens imóveis) e pelo Decreto-Lei nº 911/69 (bens móveis), a Alienação Fiduciária ganhou um capítulo especial e robusto com a chamada “Lei do Agro” (Lei nº 13.986/2020).

A nova legislação buscou modernizar e dar maior segurança jurídica ao financiamento rural privado. Dentre as inovações, a lei expandiu a aplicação da alienação fiduciária para bens fungíveis (produtos agropecuários, como grãos ou commodities), uma modalidade que antes era predominantemente coberta pelo Penhor Rural.

Essa ampliação visou criar garantias mais robustas e eficientes, atraindo mais recursos do capital privado para o campo, fora do tradicional Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR).

3. O Imóvel Rural como Garantia Fiduciária: Segurança Máxima

Quando o objeto da alienação fiduciária é o imóvel rural (a terra, a fazenda), o mecanismo se torna a forma de garantia mais poderosa disponível para o credor no Brasil.

A grande diferença em relação à Hipoteca é o procedimento de execução em caso de inadimplência:

  • Alienação Fiduciária: Em caso de não pagamento, o credor pode acionar o procedimento de execução extrajudicial (Lei nº 9.514/97). O devedor é notificado a purgar a mora (pagar o atraso) em um prazo de 15 dias. Se não o fizer, a propriedade é consolidada em nome do credor no Cartório de Registro de Imóveis, que pode então levar o bem a leilão público. Este processo é muito mais rápido e eficiente que a via judicial.
  • Hipoteca: A execução exige um longo processo judicial, que pode se arrastar por anos.

A rapidez da consolidação da propriedade no caso da Alienação Fiduciária é o principal atrativo para as instituições financeiras e o maior risco para o produtor rural.

4. Alienação Fiduciária sobre Bens Móveis e Produtos Agropecuários

A Alienação Fiduciária não se limita à terra. No contexto rural, ela é frequentemente utilizada para garantir financiamentos de:

  • Maquinário Agrícola: Tratores, colheitadeiras e implementos.
  • Animais: Rebanhos.
  • Produtos Futuros: Safras que ainda serão colhidas (como garantia de Cédulas de Produto Rural – CPRs).

Ao contrário do Penhor Rural, onde o produtor apenas “empenha” o bem (dando a posse indireta), na Alienação Fiduciária ele transfere a propriedade resolúvel. Isso oferece uma segurança superior ao credor, pois em caso de insolvência ou recuperação judicial do produtor, o bem alienado fiduciariamente fica, em regra, fora da massa concursal, protegendo o crédito do fiduciário.

5. As Controvérsias e a Impenhorabilidade da Pequena Propriedade

Apesar de sua eficiência econômica, a Alienação Fiduciária Rural levanta questões jurídicas e sociais de grande peso. O principal debate está na possibilidade de a garantia recair sobre a Pequena Propriedade Rural (PPR).

A. A Proteção Constitucional da PPR

A Constituição Federal (art. 5º, XXVI) garante a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, desde que ela seja trabalhada pela família, para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva. Essa é uma proteção fundamental à função social da terra e à subsistência da família rural.

B. O Entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ)

Por um longo período, a jurisprudência discutiu se o produtor, ao oferecer o imóvel em Alienação Fiduciária, estaria renunciando a essa proteção constitucional. O argumento era que, se ele ofereceu a PPR como garantia, ele sabia dos riscos.

No entanto, o STJ tem se inclinado a favor da proteção constitucional. Decisões recentes têm reiterado que, mesmo que a PPR seja oferecida voluntariamente em garantia fiduciária para saldar dívidas decorrentes da atividade rural, ela continua impenhorável (Tema 961 e outros julgados).

O fundamento é que a impenhorabilidade da PPR é uma norma de ordem pública, que visa proteger a dignidade da pessoa humana e a função social da propriedade, não podendo ser afastada por mera vontade contratual.

6. Riscos e Implicações para o Produtor Rural Endividado

Para o produtor rural que está endividado, a Alienação Fiduciária exige cautela redobrada, especialmente em renegociações ou prorrogações:

  1. Risco de Perda Rápida: A principal implicação é a celeridade da execução extrajudicial. Ao contrário de um processo judicial lento, o devedor fiduciante tem pouco tempo para reverter a situação.
  2. Perda Total: Na execução extrajudicial, o produtor corre o risco de perder todo o bem (a terra, a fazenda) e, muitas vezes, ainda ficar com um saldo devedor residual caso o valor do leilão não cubra totalmente a dívida e os custos de execução.
  3. Renegociação de Dívidas Antigas: É comum que o produtor, ao renegociar uma dívida antiga (com Penhor ou Hipoteca), seja obrigado a trocar a garantia pela Alienação Fiduciária, aceitando um risco muito maior em um momento de fragilidade financeira.

7. O Papel Estratégico da Consultoria e da Ação Judicial Preventiva

A complexidade e o risco da Alienação Fiduciária rural tornam a assistência jurídica especializada indispensável:

  • Análise Contratual: É crucial analisar a validade de cada contrato, verificando se a PPR se enquadra na impenhorabilidade e se todos os requisitos legais (como o registro do contrato no Cartório de Imóveis) foram cumpridos pelo credor.
  • Reversão da Consolidação: Em casos de execução extrajudicial, a única forma de suspender o procedimento e evitar o leilão é buscar o Judiciário, alegando a impenhorabilidade do bem (no caso da PPR) ou a nulidade do procedimento por vícios formais.
  • Busca pela Revisão: Muitos contratos que utilizam a Alienação Fiduciária contêm cláusulas abusivas, encargos excessivos ou taxas de juros elevadas, passíveis de revisão judicial.

Conclusão: Um Instrumento Poderoso que Exige Equilíbrio

A Alienação Fiduciária Rural é um motor do agronegócio, facilitando o acesso a grandes volumes de crédito. Contudo, ela representa uma faca de dois gumes: enquanto oferece liquidez ao mercado, impõe um risco extremo ao patrimônio do produtor.

O entendimento jurisprudencial recente, que protege a Pequena Propriedade Rural mesmo que oferecida em garantia, sinaliza uma tentativa do Poder Judiciário de equilibrar a balança entre a eficiência do mercado e a função social da terra. Para o produtor rural endividado, a chave é agir com antecedência e estratégia, utilizando o Direito como ferramenta de proteção ao seu patrimônio e à continuidade de sua atividade produtiva.

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